Celso Machado
03/10/2008
Quem diria que terra, tijolos, carrinhos de brinquedo e peças de LEGO poderiam se transformar numa obra de arte tão interessante e inusitada como a mostrada em Morrinho - Deus sabe tudo mas não é X9 (2008) O documentário de Fábio Gavião e Markão Oliveira conta a divertida história do Morrinho, que muita gente chama de maquete (ou de instalação, nos vários eventos em que foi exposto), mas que na verdade é um grande brinquedo construído por oito garotos da favela Pereira Silva (Pereirão para os íntimos) em 2001, reproduzindo a própria comunidade com tijolos quebrados ao meio como barracos e peças de LEGO como os moradores. Descoberto pelos diretores do longa ainda em 2001, o "brinquedo" ganhou fama e galgou os degraus do circuito internacional de exposições até chegar à 52ª Bienal de Veneza, em 2007 (através de reproduções feitas pelos próprios garotos, que fique claro, o original não sai de seu local de origem). Ao longo desses anos, o Morrinho cresceu junto com seus criadores, influenciado pelas mudanças experimentadas por eles e os influenciando também.
Nenhuma descrição que eu faça aqui vai dar conta do impacto visual que o Morrinho causa. Obviamente, não é uma reprodução perfeita, mas parece capturar a essência não só da Pereirão, mas de todas as favelas - e o filme usa isso a seu favor. A desinibição dos garotos envolvidos também é decisive para criar um clima leve e despretensioso, que torna possível falar de coisas sérias (tráfico de drogas, execuções sumárias, conflitos entre morros, enfim, toda a violência que envolve as favelas) sem tornar o filme pesado. Tudo a partir do Morrinho. Bailes, invasões policiais, manifestações, tudo é mostrado por ele, da maneira mais simples - e por isso objetiva - possível. E o resultado é surpreendente: alguns momentos, apesar de na prática serem feitas apenas de tijolos pintados e LEGO, podem ser assimilados de imediato, como o grande baile funk e a representação de um protesto de moradores, com direito a fechamento de ponte e embate direto com a polícia.
Outro grande mérito do filme é não tratar a realidade da favela com base no que poderia ou deveria ser, ou seja, não tenta conjeturar demasiadamente sobre as mazelas e carências daquelas pessoas, nem tenta extrair depoimentos emocionados e/ou revoltados. Ao não fazer juízos de valor, o documentário dá ao espectador acesso direto ao que realmente pensam aquelas pessoas e como funciona o seu mundo. Assim, vemos, através dos bonequinhos de LEGO, a descrição despreocupada do que pode acontecer com quem não "anda na linha"
ou como são resolvidos, sumariamente, alguns problemas dentro da comunidade. Cest la vie.
Os registros das viagens do grupo (os oito garotos e os diretores do filme, que se reuniram na ONG Morrinho) também são divertidíssimos, mais uma vez, graças à espontaneidade dos rapazes, unida a uma edição inspirada. Nessas viagens é possível ver a reação de italianos, franceses e espanhóis diante do trabalho (que para eles tem significado absolutamente diverso do que tem para nós), além de entender também qual a relação dos próprios rapazes com sua obra.
Ao trilhar um caminho original, Morrinho - Deus sabe tudo mas não é X9 se destaca entre tantos outros documentários sobre comunidades carentes, além de não ser um olhar de cima para baixo, lançado pelo mundo asfaltado sobre a favela de chão barrento. Mais do que isso, não tenta empurrar teorias artísticas ou sociológicas, tratando o Morrinho como o que ele é em sua essência: uma brincadeira de criança - e talvez por isso mesmo uma obra tão interessante.
MOSTRA PREMIÈRE BRASIL - LONGA DOCUMENTÁRIO
MORRINHO - DEUS SABE TUDO MAS NÃO É X9
Brasil, 2008. 85 minutos.
Direção: Fábio Gavião e Markão Oliveira.
Review of The Documentary “God Knows Everything But Is No Snitch”
“Favela being an exported product or a game is art”
Celso Machado
October 3, 2008
Who would every say that a bit of earth, toy cars, and pieces of Lego could be transformed in to a work of art as interesting and institutionalized as the Morrinho showing – “God Knows Everything, But Is Not A Snitch” (2008). The documentary film by Fábio Gavião and Markão Oliveira tell the fun history of Morrinho, which is what a lot of people call a model (or an installation depending on which of the various events it has been exhibited), but in actuality it is a huge game constructed in 2001 by eight boys from the favela Pereira da Silva (or Pereirão for those who know it well). Morrinho reproduces their own community with bricks broken in half to look like shacks, and pieces of Lego to represent the community residents. In 2001, the “game” starting gaining fame and made a huge leap in the international exhibition circuit when it was present at the 52nd Biennial of Venice in 2007 (which was a reproduction made by the creators of the original Morrinho – as it must be clearly states, the original artwork is never moved). Along the passing of years, Morrinho has grown as its creators have grown up. It has been influenced by the various changes and influences that its creators have also experienced.
Not a single way that I could describe here would give a semblance to the true visual impact that Morrinho causes. It is obvious that what I write in not a perfect reproduction, but I am to capture the essence of not only of Pereirão, but of all of the favelas – and film works toward this goal. The lack of inhibition of the guys involved in the project is also important in creating a light and unpretentious environment that makes it easy to talk about serious issues (such as drug trafficking, social exclusion, conflicts between different favelas, and basically all of the violence involved in favela life) creates a film with a strong message. Everything is possible at Morrinho – dances, police invasion, demonstration – everything is presented in a simple manner with this method of communication and representation. And the result is surprising. Merely with painted bricks and Lego, situation such as baile funk and the representation of a protest among residents with the closing of a bridge and direct confrontation with the police.
Another huge merit of the film is that it does not treat favela life as it should not be addressed. The film does not make assumptions about the problems of those that live in the favela, nor does it make any value judgments. The film gives its viewer direct access to what the residents of Pereirão really think and how their world works. In this way, through Lego toys, we see a carefree description of what happens to those who don’t “walk the line”, or how some problems are resolves within the community. Cest la vie.
The recordings of the group’s trip (the eight boys and the directors of the film the make up the NGO Morrinho) are extremely fun, yet inspiring, thanks to the spontaneity of the boys. On this trip, it was possible to see the reaction that Italians, French and Spanish had toward Morrinho’s work (which was a completely different reaction to what we Brazilians have). And it was also possible to understand the relationship of the boys themselves with their work.
In their own original path, Morrinho – “God Knows Everything But Is No Snitch” deals with disenfranchised communities like so many other documentaries, but it does not give a view from above looking down on favela life. In addition, the film does not try to push the artistic of sociological theories. It addresses Morrinho as it is in its essence: a child’s game – and maybe it is for this reason that it is such and interesting piece of work.
Premier Showing in Brazil – Long Documentary Film
“Morrinho - God Knows Everything But Is No Snitch”
Brazil, 2008. 85 minutes.
Directors: Fábião Gavião and Markão Oliveira
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